15/02/2007

Elogio ao Amor

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.


Miguel Esteves Cardoso in Expresso

5 comentários:

Flaw disse...

Estou admirada por ter sido escrito pelo mesmo senhor que diz que "o amor é fodido".
Eu depois venho comentar com mais calma...

libelinha disse...

eu li este elogio ao amor puro na altura.
concordo com tudo, vemos mts casais a meio gas, mornos na sua relação...
o amor deve ser potente, arrebatador, impossivel com possivel e deve-nos fazer voar sem red bull ;)

Miki Ferreiras disse...

Além do amor ser "fodido", caímos na esparrela do banalizar.. hoje já não se diz: "Estou louco por ti!", mas sim "Estou apaixonado", hoje já não se diz "Gosto muito de ti!" mas sim "Amo-te"...Mas "amar" é muito mais... é tanto que não há palavras, não há teclas, não há lugares para o definir... só o sonho poderá revelar algo mais. Deixo aqui um simples poema que vale a pena relembrar: "É duro amar escondido, sofrer por quem não merece, passar perto de quem ama fingindo que não se conhece, mas o mais duro é amar sem ser amado. Por isso ama quem te ama e esquece quem não te quis e quando o passado voltar sabe amar e ser feliz!"

apple_orange_banana disse...

Amei o post, não conheçia o texto e está realmente fantástico.

Flaw disse...

Se calhar corro o risco de ser “crucificada”, mas tudo o que ele diz é um floreado que não faz grande sentido (ou pelo menos a mim não faz, é apenas um conjunto de palavras bonitas todas juntas) e para coisas sem sentido já basta algumas pessoas que vamos encontrando por aí...
Penso que nos dias de hoje se procura desesperadamente ser aceite e louvado pelos outros. Não fazemos isto e aquilo porque nos dá prazer, mas sim porque os outros acham que fica bem! Daí que haja uma grande diferença entre o que estamos convencidos que somos e aquilo que realmente somos, e agimos segundo esta ideia que gostamos de fazer acerca de nós. E depois há um dia em que o amor acaba, porque cruelmente nos é revelado o que somos e que temos sido enganados até por nós próprios. Mas isto não significa que uma relação tenha de terminar amarguradamente... a pessoa que está connosco pode não ser a ideal, mas é a que desejamos.
Por vezes podemos pensar que fizemos um mau investimento naquela pessoa, agora que tudo terminou. Todo o sofrimento, todas as escolhas feitas em torno desse amor aparecem-nos como não tendo servido para nada, e nada na vida faz sentido nem tem uma finalidade. Nasce um ódio para com a pessoa que amamos, pois rejeita todo o nosso amor que tanto sacrifício nos deu. Pensamos convictamente que tudo na vida tem de fazer sentido e que é um direito nosso que ela faça sentido. Mas não faz e talvez seja mesmo isso que dê tanto charme à vida e ao amor...
Há quem clame amor eterno, absoluto e profundo à frente de toda a gente. Não acredito nessas pessoas, mas também não as condeno. Também, o que é preferível: viver uma vida inteira ao lado de quem outrora foi o nosso grande amor; ou viver intensamente aquele amor enquanto dura? Geralmente quando nos perguntamos se está a fazer sentido é sinal que já não o faz... Mas de novo, e com toda a jovialidade, lá aparece ele, com um novo rosto, um novo sentido, uma nova amargura... Faz parte da extrema fragilidade das coisas, dos sentimentos e da dor. Podemos então perguntar-nos “ e se naquela altura ele/a me tivesse dito sim em vez de não? Seria eu hoje mais feliz?”. Seria diferente certamente, mas talvez aí me estivesse a perguntar “e se naquela altura ele/a me tivesse dito não...”.
O amor não se planeia, logo o MEC está a cometer um grande erro aqui. Se é algo que não se planeia, então também não o pode definir, não lhe pode dar um rosto, um trajecto... O amor entre duas pessoas não se deve resumir ao “ser namorados”, só porque é o mais conveniente aos olhos da sociedade. Amor implica também ser-se companheiro, íntimos, cúmplices, amigos! Este amor poucos o sentem, mas todos o anseiam viver. Talvez seja mesmo isso que dê sentido ao amor: a procura eterna de um sentido. Além disso, nos dias de hoje muitas pessoas pensam que podem sempre encontrar um amor melhor, que o merecem. Enganam-se! Encontram amores diferentes, isso sim. Amores que nos trazem novos desafios, que nos levam a nos re-descobrirmos, a nos re-inventarmos. A fantasia, a expectativa, a surpresa... o desejo!
Chega a ser confuso a dificuldade que temos em definir o que sentimos por cada pessoa. Até a divisão que fazemos entre amor e amizade chega a ser artificial, porque são muitas as vezes que não conseguimos traçar uma fronteira nítida entre os dois. E é possível sentir-se amor por um amigo/a? Penso que sim. Ou melhor, quero acreditar que sim, independentemente do nome que queiramos dar ao que se sente.
Amor, paixão, desejo... Sinto-me “estrangeira” nestes mundos que não fazem sentido, onde as pessoas querem dar sentido a tudo, ao que vivem, ao que sentem, onde tudo se mede de forma quantitativa.
Por uma vez gostaria de encontrar pessoas modestas, pessoas com quem eu me pudesse sentar ou agachar no colo enquanto me afagam, abandonada e sem ter que manter nenhuma pose. Alguém com quem falar de pássaros e de sol, sem ter de ser profunda ou engraçada. Um sorriso ou um olhar em vez das palavras, um murmurar melodioso ao ouvido... Pessoas com quem ter uma conversa modesta, uma amizade genuina, tudo nada de especial mas, mesmo assim, tudo simples, sentido e sem me preocupar com os porquês...