04/10/2007

Futebol

Como se sabe, há três clubes chamados grandes no futebol português: a
Cigarra, a Formiga e o Kalimero.

A Cigarra é o Benfica: faz-se tratar por «A Instituição» e auto-intitula-se
de «maior clube do mundo» — com direito a diploma e tudo; diz que vai a caminho dos trezentos mil sócios e que terá uns trinta milhões de adeptos da
«marca Benfica» espalhados pelo mundo inteiro; a sua grandeza é tão
desmesurada, tão avalassadora, que nem é preciso ter, como este ano, uma
equipa de futebol «que qualquer treinador do mundo gostaria de treinar»,
para que os títulos lhe caiam, naturalmente e por vassalagem alheia, aos
pés. Porque acha que de há muito adquiriu por usucapião o direito natural
aos títulos, «A Instituição» não acredita que estes exijam trabalho, talento
e paciência. Resultado: não é campeão nacional em modalidade alguma, excepto
em futebol de salão (que teve de começar a praticar exactamente para poder
ser campeão em alguma coisa, tirando partido do facto de A Formiga não
praticar a modalidade).

A Formiga é o FC Porto: passou décadas a prestar vassalagem aos Grandes de
Lisboa, aceitando pacificamente o papel de animador inútil dos campeonatos.
Até ao dia em que soltou o Grito de Ipiranga e nunca mais parou: ultrapassou
confortavelmente o número de títulos nacionais do Kalimero e aproxima-se
vertiginosamente dos da Cigarra e, em matéria de títulos internacionais,
arrasou: face aos dois longínquos títulos de campeão europeu (numa época em
que só três ou quatro boas equipas disputavam a Taça dos Campeões e em que,
com estrelinha no sorteio, podia-se ir por ali fora), e face ao mítico
título de uma obscura e já defunta Taça das Taças conquistada pelo Kalimero
na noite dos tempos, a Formiga tem para apresentar, nos últimos 20 anos, uma
Taça UEFA, uma Supertaça Europeia, dois títulos de campeão europeu e outros
dois de campeão mundial. Este ano defende os títulos de campeão nacional de
futebol, hóquei, andebol e já nem sei que mais. Épocas houve, nestes últimos
anos, em que juntou simultâneamente todos os títulos de campeão das
modalidades profissionais ou os títulos de campeão nacional de futebol em
todos os escalões, dos infantis aos seniores. Tal qual como na fábula, tanto
a Cigarra como o Kalimero gritam que os sucessos da Formiga são falsos e
resultado apenas de batota — (nacional e internacional, presume-se). Repetem
isto há vinte anos na esperança de que, como dizia Goebbells, repetir uma
mentira até à exaustão a transforme numa verdade… por exaustão. A Formiga
ri-se e segue em frente. Ela sabe que, para ganhar mais vezes do que os
outros é preciso muito trabalho, muito talento, muita organização, muita
humildade e uma cultura de vitória que não se consegue com simples
proclamações de superioridade natural.

O Kalimero é Sporting e é o caso mais problemático. Os tempos mudam e os
tempos mudaram em desfavor do Kalimero: no futebol nacional, tal como na
vida política ou demográfica do país, os tempos evoluiram para a
bipolarização e o Kalimero é o parceiro sobejante. Em vão, vive a proclamar
que foram eles que trouxeram o futebol para Portugal, que são eles os
gentlemen e guardiões do templo com a profusão de condes e barões que deram
ao nosso futebol. A verdade é esta: o Kalimero tem hoje menos títulos, no
futebol e no resto, menos adeptos, menos assistências e incomparavelmente
menos projecção e conhecimento internacional do que a Formiga. Pior do que
isso, eles — que se reivindicam de donos do fair-play e do bom gosto —
sofrem de cada vez que comparam o seu novo estádio, com nome de Visconde, a
essa coisa linear e deslumbrante que é o Estádio do Dragão, e
desesperadamente sentem que, em cada nova geração de adeptos que chega ao
futebol, são muito mais os dragões do que os leões.


O Kalimero não tem culpa disto e, ao contrário da Cigarra, tem feito tudo o
que pode e deve para contrariar o inevitável. O Sporting — repito o que já
aqui disse — é hoje o clube melhor administrado e o que mais faz para evitar
a bancarrota em cuja iminência vivem todos os clubes portugueses (e mesmo
que isso passe por sacar à Câmara Municipal de Lisboa negócios e benesses
que deveriam fazer corar de vergonha os inspectores do IGAT que conseguiram
descobrir graves irregularidades na construção do Estádio do Dragão, porque
teria havido uns terrenos do clube permutados com a CMP e sobrevaliados, e
assistiram depois, em respeitoso silêncio, a todos os negócios de favor
celebrados pela CML com Benfica e Sporting para a construção dos seus novos
estádios).
Dos três, o Kalimero é o que tem menos dinheiro e menos orçamento para o
futebol, o que, em contrapartida, mais talentos cria e exporta, e o que mais
faz das tripas coração para se manter na discussão ao nível do topo. Merece
por isso um rol de elogios e só não merece todos porque lhe falta uma
característica fundamental que distingue os verdadeiros desportistas e o
verdadeiro fair-play das falsas nobrezas apregoadas: saber perder. O
Sporting não sabe perder e, por isso, adoptou a atitude do Kalimero, sempre
a queixar-se dos «meninos maus» que lhe roubam a bola no recreio. É já uma
cultura entranhada entre os sportinguistas, tão entranhada como o é a
cultura de vitória entre os portistas ou a cultura de superioridade entre os
benfiquistas.
Como se tal não bastasse, o Kalimero usa, sem pudor algum, uma bitola com
dois pesos e duas medidas, convencido de que ninguém nota a hipocresia.
Quando acha que tem razões para se queixar do árbitro — o que sucede sempre
que não ganha — arma um escabeche de todo o tamanho, com declarações
inflamadas, comunicados patéticos ou rídiculas «procissões de luto»; quando
são benficiados — o que acontece muito mais vezes e quase sempre quando
jogam em Alvalade — calam-se muito caladinhos e assobiam para o ar. Dizem
que só não foram campeões no ano passado porque sofreram um golo marcado com
a mão, mas fingem não ter visto o golo que entrou dentro da sua baliza e não
valeu ou os erros que lhes permitiram sair do Dragão com uma vitória. Este
ano, passaram uma semana revoltados porque o árbitro não lhes marcou um
penalty na Amadora, que não teria qualquer influência no resultado, mas
calaram-se quando, em Alvalade e contra o Setúbal, o árbitro esqueceu um
penalty a favor do Vitória, que teria modificado o resultado.
O «escândalo» desta semana é porque, dizem eles, lhe roubaram dois penalties
na Luz ( o mesmo árbitro que os fez ganhar no Porto, em Abril passado…).
Ora, penso que, se há alguém insuspeito a analisar um Sporting-Benfica, é um
portista. E o que eu vi é que, dos três lances contestados no jogo, o único
que oferece dúvidas acabou a beneficiar o Sporting: um penalty que João
Moutinho terá cometido mesmo a terminar o jogo. O primeiro penalty reclamado
pelo Sporting faz parte daquela categoria de penalties de que os
sportinguistas reclamam aos dois ou três por jogo, já por hábito instalado.
E o segundo, é preciso ter muito má-fé e uma total falta de vergonha para o
reclamar. O país inteiro viu que não houve penalty algum, que o Katsouranis,
a menos que fosse decepado, não podia evitar que a bola lhe batesse no
braço. O juiz de linha viu mal e marcou penalty, o árbitro viu bem e não o
marcou. Sustentar que deveria ter prevalecido a opinião do juiz de linha,
mesmo que ela implicasse uma vitória falsa como Judas e com o argumento de
que foi assim que o Benfica ganhou na Amadora, deita por terra, sem honra
alguma, quaisquer veleidades de se armarem em donos do desportivismo.
Aliás, eu fartei-me de rir, ao ler no sábado e ontem o relato da «histórica
reunião» promovida pela Bola entre os presidentes do Benfica e do Sporting.
Almoçando antes do jogo, não tiveram dificuldades em entenderem-se na
conclusão de que são ambos vítimas das arbitragens, em benefício do «Outro»,
e irmãos na luta contra o suposto «Sistema» (de que eles controlam tudo:
Federação, direcção da Liga, Comissão de Arbitragem e Comissão Disciplinar).
Mas — pensei eu com os meus botões — bastaria que houvesse um casosinho ou
inventado como tal no jogo do dia seguinte, e lá se ia a harmonia, a
irmandade e a luta comum contra as arbitragens e o «Sistema». Dito e feito.

(Autor desconhecido)

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